Resenhas

Almoço de confraternização, In: “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, de Sérgio Sant’Anna

LUIZ DOS SANTOS PREZA


Trata-se de uma narrativa imaginária sobre um “falso” almoço que acontece entre um militar que assumiu o poder político, por meio de um golpe, e dissolveu o Congresso e um senador do antigo sistema de governo. Na verdade, o senador fora detido e aguardava a chegada do veículo que o levará à prisão. Enquanto aguardam no restaurante, o sádico marechal Rosalvo humilha o senador Arcângelo com atitudes desrespeitosas e sádicas. Contudo, o militar obriga o senador a manter a aparência de normalidade perante os demais frequentadores do local [no momento comerciantes, políticos, altos funcionários, jornalistas, políticos], e encena a celebração de uma possível aliança política. No final o narrador, que acompanhou o desenrolar da história, escrevendo suas observações num guardanapo, rememora acontecimentos que envolveram o senador Arcângelo bem como momentos e lugares aprazíveis que viveu naquela Ilha, sempre com certa nostalgia. Mais tarde, reunirá seus escritos, suas lembranças e as informações obtidas junto ao garçom espanhol para supostamente construir este seu relato e, quem sabe, tê-lo como prova de sua presença naquele acontecimento histórico.
O narrador descreve um cenário fictício, um lugar imaginário [Restaurante Taverna Ouro, localizado na confluência da avenida dos Revoltosos com a praça do Repúdio, numa cidade de uma ilha] onde dois homens estão sentados para o almoço, um militar [farda cheia de condecorações] e outro que se revelará político.
Característica de um conto de atmosfera, quando os fatos se sucedem em meio a momentos de tensão, mas sem clímax no final, a narrativa termina com o narrador formando seu entendimento sobre os fatos presenciados e fazendo ponderações acerca, com base em anotações e informações colhidas no local para, na sequência, realizar previsões irônicas sobre esse possível acontecimento histórico, do qual participara como observador. Portanto, trata-se de um final especulativo e sem acontecimento “surpresa”.
O narrador é um escritor, poeta e cronista. Concluo que se trata de um narrador definido [eu, que estou próximo...] coadjuvante indeterminado [um escritor qualquer], em primeira pessoa, que pode se confundir com o autor [poderei provar que estava mesmo ali] uma vez que ele expressa suas ideias e conjecturas.
O marechal Rosalvo é a personagem protagonista. Homem de aspecto físico [cabelo à escovinha; uns sessenta anos de idade; aprumado; rosto de queixo quadrado] e de personalidade [determinado; espalhafatoso; intimidador; poderoso] marcantes, e Vice-Presidente do Conselho Provisório que governa o país após um provável golpe militar [Congresso dissolvido]. O conto nos conduz a perceber nessa personagem um sujeito que detém o poder político atual e o conduz com autoritarismo.
O outro personagem protagonista é o senador Arcângelo, homem de aspecto físico e trajetória decadentes [calvo, gordo, pálido, emagrecido devido aos recentes fatos,], líder da oposição de um Congresso dissolvido. O conto demonstra que o senador na verdade fora detido por meios violentos, e aguarda para ser conduzido à prisão [O senador arreganha a boca deixando entrever dois dentes partidos ao sorrir a mando do marechal Rosalvo].
O escritor é quem nos narra os fatos que nos revelam os demais personagens:
Policiais civis: Guarda-costas do marechal Rosalvo, ainda conservam hábitos de uma estrutura social supostamente decadente [bigodes, terno azul-marinho semelhantes ao do senador Arcângelo.
Fotógrafo: Homem h
Antônio: Garçom espanhol, faz o tipo popular
Deputado Manoel Olivares: Adere ao novo governo golpista.
Jornalista: Amigo de Olivares.
Músicos de uma orquestra: Músicos chamados a tocar durante o almoço uma canção tradicional do lugar, possivelmente uma canção cívica.
A narrativa se desenvolve em espaço fechado [Taverna Ouro] e aberto [calçada onde se despedem os políticos e a rua por onde caminha cinco quarteirões o narrador], e dura cerca de duas horas, o equivalente ao almoço e a caminhada do narrador. Mas a cena que predomina acontece no restaurante.
O que mais me atrai neste conto é sua capacidade de metaforizar uma situação política que pode se manifestar de variadas maneiras e aparências, em lugares diferentes, mas com efeitos semelhantes, que reproduzem o retrocesso, do ponto de vista ético e da evolução da humanidade. O autor consegue fazer uma prosa que se mantém atual, pois apesar de publicada em 2014, percebe-se que fora escrita em tempo pretérito [“Uma estória que escreverei sem pressa (por que haverão de ter pressa velhos escribas solitários?) e depois guardarei num canto qualquer desta casa empoeirada”. P. 98]. O conto revela, ainda, com muita ironia e humor negro, as faces dantescas da existência humana numa leitura leve, mas aguda. O conto de atmosfera, o qual guardo preferência, propicia esse tipo de narrativa e abre espaço para os subtextos que colocam o leitor para pensar e erigir hipóteses de discussão num campo ampliado e aberto. A narrativa trabalha o tempo todo com oposições que se centram nas figuras e perfis de dois políticos: um que perdeu o poder; e outro que tomou este poder, estabelecendo, assim, o conflito do conto.
Os contos de Sérgio Sant’Anna transmitem um senso de liberdade criativa que problematiza questões humanas que acabam por misturar autobiografia, ficção e realidade. Como já dito, este conto foi retirado da publicação “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” e o conto que intitula o livro ainda deixa mais clara essa fusão entre possibilidades no campo da realidade e da ficção. Neste conto, o autor usa um narrador que se confunde com o autor, técnica muito utilizada por Sant’Anna em seus contos, e que fornece esse caráter meio autobiográfico, a meu ver. A escolha dessa forma de narrador lhe confere, a princípio, características do narrador câmera. Mas essa noção logo é superada pelo jogo de hipóteses que desenvolve ao longo do texto. O autor permanece o tempo todo indeterminado, e se há alguma definição, ela está na figura de um escritor, cronista e poeta como ele, narrador, se apresenta certa altura. Dessa forma o narrador deixa ao leitor questões que não se pode aferir se são posições do autor ou apenas do narrador. É claro que essa distinção é quase impossível e vem sendo objeto de pesquisas atuais que apontam para uma preferência pela neutralidade do narrador face aos personagens. Ou seja, busca-se transfigurar a voz de quem fala no texto, retirando-a do narrador/autor e repassando-a a um personagem real, técnica que remete à antropologia, e hoje já bastante usada por autores como Bernardo Carvalho.
As vozes do narrador e dos personagens primam pela coloquialidade. O narrador se utiliza da ironia e do humor negro de forma adequada aos seus propósitos críticos refinados, sempre com grande sutileza, enquanto o personagem militar é sarcástico, hipócrita e sádico. Por outro lado, a fala do senador é submissa e temerária diante de uma expectativa ruim, sua prisão ou fim [ele almoça como se fosse sua última refeição, o militar lhe nega sobremesa, mas o narrador diz que o senador adoraria comer uma sobremesa e tomar um cafezinho]. Aos demais personagens, o narrador imprime um ritmo onde prepondera a hipocrisia, notadamente nas personagens do campo midiático.
A narrativa é conduzida com picos de tensão sem um desfecho surpresa, o que caracteriza o conto de atmosfera. O cenário imaginário, que poderia, contudo, ser real, oferece os elementos para que sejam desenvolvidos os momentos de tensão que evoluem até a prisão do senador, mas tudo ocorre de forma sub-reptícia, em subtextos que nos revelam, aos poucos, a real situação que representa o almoço entre os protagonistas. Parece-me importante a linguagem irônica, pois é ela que encobre e revela a realidade crua do conflito existente. Outro ponto interessante é que o autor parte de um cenário com elementos muito genéricos para evoluir em direção à especificidade do lugar. Esse passo do geral para o específico segue a toada das revelações da narrativa, sempre dando pistas ao leitor para que ele as reúna num entendimento.
O que sustenta o elo entre o conteúdo imaginário do conto e a realidade é a manutenção da atmosfera de verossimilhança. A verossimilhança é o principal elemento, ao meu ver, que suporta o paradoxo da dúvida entre imaginação e realidade, na narrativa.
Os diálogos são concisos e precisos. E não poderia ser diferente uma vez que eles fornecem pistas que o leitor vai colhendo e o narrador vai esclarecendo por meio de hipóteses realistas que culminarão na hipótese maior: “Um pouco de sorte, digo, porque poderei provar que estava ali, naquele instante, presenciando os acontecimentos históricos.”
Quanto às figuras de linguagem, observa-se o uso de metonímia em “restos de porco selvagem”, metáforas como “olhos que passeiam e agridem” ou “ler lábios”.
Cumpre ainda observar que a resenha do conto “Almoço de confraternização”, presente no livro “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, fornece uma boa ideia do que o leitor poderá esperar ao interagir com os demais contos dessa coletânea, que permanece atualíssima - o que dá a dimensão da grandeza deste autor.

 

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